segunda-feira, 12 de junho de 2023

BOI MANSINHO E A SANTA CRUZ DO DESERTO (Grupo Clariô de Teatro) - Crítica de Edgar Olimpio para o site Revista Stravaganza - 2023

 

Teatro: Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto

O massacre de Caldeirão da Santa Cruz do Deserto foi um episódio significativo na história brasileira e convenientemente apagado, ao contrário, por exemplo, do perpetuado conflito de Canudos, no sertão baiano (1896/97). O inquieto Grupo Clariô de Teatro, que há dezoito anos desenvolve trabalhos para, sobre e com a periferia da cidade de São Paulo, decidiu revisitar os eventos ocorridos nos anos 1920 e 1930 na região de Cariri, no Ceará. A empreitada de reavivar a memória da chacina resultou em um documento histórico de valor inestimável.   

Com texto musicado e estruturado quase todo em versos do escritor cearense Alan Mendonça, direção e dramaturgia compartilhada por Naruna Costa e Cleydson Catarina, a atraente produção se movimenta inspirada na estética do Reisado Cearense. Trata-se de um folguedo popular em forma de cortejo com danças, músicas, brincantes e seres fantásticos, como os cômicos Mateus, o híbrido humano/animal Jaraguá, e Miolo, aquele que transporta sobre os ombros o boi cenográfico.

Para tonificar o sentido da montagem, o autor resgata e celebra ainda Maria do Araújo, a beata preta que em 1889 fez a hóstia virar sangue na frente de todo mundo e foi silenciada – o milagre, por sinal, inaugurou as romarias em Juazeiro do Norte. A trama gira em torno do beato paraibano preto José Lourenço, descendente de escravos alforriados, que fundou e liderou duas irmandades no interior cearense, destruídas em momentos diferentes por uma aliança entre a Igreja Católica, Poder Público, coronéis e latifundiários.

Envolvido por uma roda de jongo, de origem africana, que louva os antepassados e celebra a ancestralidade negra, o público ingressa na sala em estado de descontração. Nesse instante, o espetáculo abre alas para a entrada de mestre Joaquim, egresso do mundo dos mortos. Em livre criação, ele foi um menino sobrevivente do Caldeirão e seus descendentes irão desfiar sua trajetória ao longo do enredo. 

Recursos épicos são empregados para alternar o passado, ambientado no sitio Baixa Dantas e na fazenda Caldeirão Santa Cruz do Deserto, e o presente ficcional, em São Paulo. A ponte entre os dois períodos e geografias é um dos códigos para se compreender a peça, que estabelece um oportuno paralelo entre a repressão ocorrida naquela época e a perseguição nos dias atuais aos povos da Favela do Moinho, Pinheirinho, Aldeia Tekoa Piau, Yanomamis e tantos quilombos, aldeias e terreiros urbanos Brasil afora. Aqui, uma emblemática confraria de Boi-bumbá é cerceada pelo Estado em sua tentativa de existir na periferia paulistana. “A idolatria a um animal vai contra os princípios do legado cristão”, justifica Cabeção, representante do Poder Público, um estafeta de olhos esbugalhados e assimétricos. 

Em Baixa Dantas, o devoto Lourenço instaura uma comunidade religiosa fraterna, onde todo homem produzia conforme a sua capacidade e recebia de acordo com a sua necessidade. Eles ganham de Padre Cícero um boi zebu, batizado de Mansinho e venerado pelos seus moradores. Não demora e o culto ao novo hóspede passa a incomodar a província, avessa a esses “loucos desvairados de fanatismos”. Uma guerreira do reisado anuncia a conflagração iminente. Floro Bartolomeu, um político venal a serviço dos poderosos da vizinha Juazeiro do Norte, esquarteja o animal e prende Lourenço, solto dias após.     

Com a venda da propriedade pelos seus donos, e consequente expulsão, o beato e seu grupo se instalam na fazenda Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, cedida por Padre Cícero. O projeto autossustentável é reiniciado e a sua fama atrai levas de romeiros, deserdados, peregrinos e retirantes, pessoas em busca de uma saída da miséria.

A experiência outra vez acendeu o estopim de uma fúria punitiva por parte da elite local, que a via como uma nova Canudos, com iguais métodos e princípios, florescendo sob a liderança de um guia espiritual. Era necessário aniquilar a identidade daquela “sociedade comunista”. Em 1937, o Caldeirão foi invadido pela segunda vez e dizimado totalmente.  

A fusão entre o remoto e o contemporâneo, quando o capataz Floro Bartolomeu e o porta-voz do Estado repetem as mesmas falas e ações e dois bois são sacrificados sob o olhar resignado da população, é uma das boas sequências desembrulhadas. Várias outras têm similar impacto. Como a dos encantados José Lourenço e Maria do Araújo, que cruzam as fronteiras do tempo para celebrar a gênese de um boi. Ou o diálogo entre o discípulo Severino Tavares e o religioso, no qual o primeiro sugere reagir com violência às investidas dos poderosos. “Ou a gente mata ou a gente morre”, ele resume, uma fala prontamente refutada por Lourenço. Placas são fincadas na borda do espaço cênico com as palavras nascimento, batismo, morte e renascimento. Traço dos festejos do Boi-bumbá, a liturgia expressa o ciclo da vida.

Colheres, garfos, pratos, canecas, espigas de milho e ervas espalham-se na cena como símbolos que contrapõem a fartura produzida pelo povoado à seca que flagelou o Nordeste em 1932. Na passagem da carnificina do Caldeirão, um pequeno avião de madeira desliza no alto. Simultaneamente aviõezinhos de papel cruzam o ar, em alusão ao bombardeio aéreo sobre o lugar. Na morte de Padre Cícero, abre-se um guarda-chuva preto com chapéu cobrindo a ponta. A cela da prisão se transforma em boleia de caminhão na horizontal. Maria de Araújo é representada por máscara e corpo coberto de véu preto. Coronéis surgem com cabeça de papelão estilizado.

A direção cozinha habilmente esses ingredientes e consegue solucionar uma narrativa apinhada de informações e estímulos visuais e sonoros. Ao som de uma pluralidade de expressões musicais, a encenação mantém-se sempre fluída e ágil, desprende o grau de tensão dos acontecimentos e jamais se fecha sobre si mesma. Há uma luminosidade vital que emana do elenco, que se desdobra em vários personagens e narradores. Os atores extraem o encantamento estético do que é bruto com entusiasmo e competência. Não há destaques individuais, mas um conjunto homogêneo a serviço da mis-en-scène. Figurinos (Martinha Soares), maquiagem (Naloana Lima), cenário e iluminação (ambos de Alexandre Souza e Rager Luan), bonecos (Rager Luan) e o trio feminino de musicistas (Giovana Barros, Thaís Ribeiro e Naruna Costa) refletem e acentuam a representação da tragédia.   

A intrépida trupe demonstra dominar o material dramático. Faz um mergulho consciente no semiárido nordestino para recompor o genocídio de camponeses que queriam apenas viver de forma digna. Ao capturar o seu nexo e fundamento, a obra irradia questões universais e atemporais. É um teatro político, social, sagrado e lúdico, construído de modo direto, baseado em muita convicção e sem concessões.

(Edgar Olimpio de Souza – eolimpio@uol.com.br

(Foto Sergio Fernandes)

 

Avaliação: Ótimo

 

Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto

 

Texto: Alan Mendonça

Direção e Dramaturgia: Naruna Costa e Cleydson Catarina

Elenco: Alexandre Souza, Augusto Luna, Cleydson Catarina, Martinha Soares, Naloana Lima, Paloma Xavier, Rager Luan, Uberê Guelè e Washington Gabriel.

Musicistas: Giovana Barros, Thaís Ribeiro e Naruna Costa

Estreou: 18/05/2023

Teatro Sesc Pompeia (Rua Clélia, 93, Pompeia). Quarta a sábado, 20h30; domingo, 17h30. Ingresso: R$ 12 a R$ 40. Em cartaz até dia 11 de junho.

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